sexta-feira, 15 de maio de 2015

Imperativo

Transforma a tua dor em poesia
Tua solidão, em poesia
Transforma até, em poesia
As cores opacas do mundo
As crianças famintas do mundo
Há crianças famintas no mundo!
Lembra na tua poesia.

No entanto, ou todavia
Não transmutes a poesia
Essa que deve ter sido inventada
Pelo Pessoa ou de Andrade
Nos teus jogos de linguagem vazia
Num comboio de palavras
Desaconchegante e indiferente
Pois que a poesia é morada
[e é preciso pensar nisso seriamente]
De sentimentos
que não tem outra paragem.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

A barbearia

Tinha que ser exatamente naquele lugar: na parte mais velha da cidade, quase invisível, num prédio velho e sem a vocação para a função comercial que se lhe desejam atribuir, do lado do teatro e da praça boêmia. Tudo naquela barbearia era precisamente do jeito que deveria ser. As cadeiras reclináveis de metal tão maciço e pesado como já não se fabrica há tempos, as tesouras inoxidáveis e a caixa registradora que não deve ter menos de cinquenta anos. Talvez porque representasse um hábito tão em desuso, a barbearia era um museu vivo, bonita e ativa como uma árvore centenária.
Nunca reservei qualquer apreço por nenhuma das coisas convencionalmente masculinas. Em uma sociedade tão machista, cultivar qualquer das representações e costumes associados à masculinidade parece inevitavelmente arrogante e ofensivo. Na barbearia, no entanto, eu confesso que senti, pela primeira vez, um inegável prazer em ser homem.
Explico. Na barbearia, o ser homem adquiria uma delicadeza forte e terna que, eu imagino, no universo masculino deve ser comparável apenas à sensação de ser avô. O barbeiro, senhor Nelson, era a tradução perfeita dessa delicadeza. Devido à minha memória absolutamente sentimental e pouco exata, mal consegui gravar o seu nome, mas os cabelos brancos e a pele que registram sua idade [exatamente como eu gostaria que fosse; por mim, deveria ser proibido tornar-se barbeiro antes dos sessenta anos], e o cheiro de talco nas mãos firmes formam uma lembrança sólida. Senhor Nelson, o barbeiro ideal aquiescia com uma naturalidade espantosa para um homem de sua idade, quando eu pedia um minuto para prender os cabelos.
Numa rara ocasião, meus cabelos longos ou o brinco que espeta minha orelha, em nada pareceram desencaixar-me daquele ambiente cuja noção de masculinidade remonta a outro século. Na barbearia, ser homem era bonito: com súbita intimidade, o barbeiro tocava e moldava o desenho do meu rosto. Suavemente, penteava e cortava os pelos de minha barba. Ao usar a navalha, o senhor Nelson redobrava os cuidados, alertando que minha pele era muito sensível.
Mais sensível, no entanto, era todo aquele ritual. A beleza de confiar o cuidado com meu rosto, de submeter-me, expondo o pescoço à navalha daquele homem, que com ares de anjo e artista, me mostrava que a delicadeza pode ser algo muito masculino. A delicadeza forte de ser homem, assim como é delicada a força da mulher. Foi como ingressar num clube secreto, num rito milenar. Na barbearia eu me orgulhei de ser homem pela primeira vez.